Arquivo


por Denise Santos


“Coração”, de Rosana Paulino

ver também: corpo - experiências epidérmicas - memória

           
           
           Os arquivos desempenham um papel crucial na construção e preservação de narrativas históricas e culturais atuando como verdadeiras janelas para o passado. No entanto, é importante reconhecer, que dentro dessas compilações de arquivos, existem realidades que permanecem ocultas, realidades que não são compartilhadas, maioritariamente camufladas pela perspetiva eurocêntrica e pela estrutura patriarcal. Relembrando especificamente a escassez de catalogação relativamente a questões de género e raciais em Portugal que dilui essas problemáticas em categoria genéricas, sendo que “A civilização da escrita, do livro, se impunha, como se fora única, verdadeira e universal em seu desejo de dominação e de hegemonia [...] E visava ao desaparecimento simbólico ou literal do outro, seu apagamento” (Martins, 2021, p. 35).

Nesse sentido, deparámo-nos com histórias incompletas, que nos removem do lugar de fala enquanto pessoas com variadas intersecionalidades/pluralidades, colocando-nos no lugar de espetadores. Estas formas de silenciamento levam-nos a questionar: Quem tem controle sobre os arquivos? De quem são? O que está catalogado? E quem tem acesso a esse registo? No contexto da “Lisboa Negra” - em Portugal -, verificamos que as relações de poder, atravessam diversos aspetos da produção de conhecimento. Desde as fontes e os arquivos até às narrativas historiográficas e políticas de memorialização. Os trabalhos historiográficos portugueses, mesmo quando críticos, têm negligenciado a história negra, concentrando-se principalmente nas relações políticas e figuras do estado colonial (Roldão, C., Pereira, J.A., & Varela, P., 2023). A ausência de obras sobre a diáspora negra nas bibliotecas portuguesas também dificulta a construção de uma reflexão não eurocêntrica, compreendendo que “O arquivo não é um depósito, ele «move-se» a partir das buscas que lá são feitas. Assim, um «objeto» não procurado não é constituído como fonte, não é agrupado sob determinado tópico, portanto, não «existe».” (Roldão, C., Pereira, J.A., & Varela, P., 2023, p.260).

Neste enquadramento, o livro "The Restitution of African Cultural Heritage - Toward a New Relational Ethics" (2018) de Felwine Sarr e Bénédicte Savoy, enfatiza como a apropriação cultural pode ser considerada um crime contra as comunidades afetadas. O que faz com que iniciativas como a reedição do jornal O Negro, em 2021, assuma um papel significativo. O projeto liderado por Cristina Roldão, José Pereira e Pedro Varela visa recuperar a memória do movimento negro em Portugal, oferecendo visibilidade e tangibilidade para a comunidade negra atualmente. Esta realidade permite a compreensão dos artefactos enquanto sujeitos com contribuições significativas para os seus descendentes e herdeiros, sendo na sua maioria arquivos que transportam uma inferiorização alinhada à desumanização bem como uma objetificação de pessoas que não estejam compreendidas no conceito normativo ocidental (Ndikung, 2018). Destaca-se que a objetificação que se estende aos corpos presentes no arquivo colonial, pois: “Estas vítimas das fotografias publicadas são nossas, são das nossas casas, das nossas terras, das nossas famílias. Não estamos distantes, não estamos desligados desses corpos. Hoje, continuamos a carregar o peso dessas hipersexualizações violentas, dessas hiperacessibilidades ao corpo colonizado.” (Cases Rebelles, 2018).

Nessa perspetiva, o corpo é entendido como um repositório vivo de experiências individuais e coletivas, um arquivo incorporar. Assim como os arquivos convencionais armazenam e preservam informações, o corpo também contém histórias, traumas, conhecimentos e identidades que são transmitidos e moldados ao longo do tempo. O corpo-arquivo é um espaço de memória que produz pensamento, argumento que se alinha com a obra de Leda Maria Martins, Performances do tempo espiralar: poéticas do corpotela (2021), onde existe a combinação de elementos de performance, instalação e arte conceptual, com o conceito de tempo como uma entidade fluida que provoca uma constante transformação. Para a autora, a incorporação do nosso corpo como papel central de expressão, gesto, movimentos, invoca uma experiência única e subjetiva.

Da mesma forma que os arquivos são interpretados e analisados para compreender o passado, o corpo-arquivo pode ser investigado e descodificado para desvendar aspetos da identidade pessoal e social. Essa abordagem desafia a conceção tradicional de arquivo como algo estático e inerte, reconhecendo o corpo como um espaço dinâmico de preservação e transmissão de conhecimento cultural, histórico e emocional. A reflexão sobre o corpo-arquivo oferece oportunidades para compreendermos a complexidade da experiência humana e questionarmos as normas e estruturas que moldam a nossa compreensão do eu e do mundo ao nosso redor. A título de exemplo, temos as obras da artista Rosana Paulino, que através da abordagem de questões de género, raça e memória, apresenta um forte engajamento com o arquivo, utilizando documentos e fotografias antigas para criar narrativas visuais que resgatam memórias coletivas e questionam as estruturas de poder. Na área das artes visuais identificamos ainda artistas como: Sandim Mendes, Sofia Yala, Délio Jasse, Eustáquio Neves e Dimakatso Mathopa, que se envolvem com o arquivo pessoal e coletivo, visando desconstruir elementos visuais e confrontar a memória. As formas artísticas desenvolvidas por estes artistas, ampliam a ressignificação do conceito de arquivo, abrindo espaço para a incorporação de testemunhos orais, vestígios materiais, iconografia e imagens em movimento, como estratégia fundamental para lidar com a ausência de conteúdos e ampliar a nossa compreensão histórica (Roldão, C., Pereira, J.A., & Varela, P., 2023: 259).



bibliografia
Cases Rebelles (2018) “Les corps épuisés du spectacle colonial”. Setembro de 2018. [Consultado a 01 de julho 2023] Disponível em:  <https://www.cases-rebelles. org/les-corps-epuises-du- spectacle-colonial/>
Sarr, F., & Savoy, B. (2018). The Restitution of African Cultural Heritage - Toward a New Relational Ethics. Columbia University Press.
Martins, L. M. (2021). Performances do tempo espiralar: poéticas do corpo-tela. Editora da Universidade Federal de Uberlândia.

Ndikung, Bonaventure Soh Bejeng (2018) South remembers: Those Who Are Dead Are Not Ever Gone. South as State of Mind. [Consultado a 17 de fevereiro 2023] Disponível em: < https://southasastateofmind.com/south-remembers-those-who-are-dead-are-not-ever-gone/ >
Roldão, C., Varela, P., & Falas Afrikanas (2021) Jornal 'O Negro' - edição comemorativa do 110o aniversário [online]. Buala. Disponível em: https://www.buala.org/pt/a-ler/jornal-o-negro-edicao- comemorativa-do-110-aniversario Roldão, C., Pereira, J.A., & Varela, P. (2023) Tribuna Negra – Origens do movimento negro em Portugal (1911-1933). Lisboa: Tinta da China



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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».