Arte Contemporânea Afrobrasileira — ventar o tempo, uma perspectiva


por Jean Carlos Azuos

Abdias Nascimento.
Okê Oxóssi, 1970.


ver também: Anti-racismo, Experiências Epidérmicas

           Ventar o tempo: Uma perspectiva da arte contemporânea afrobrasileira

           Esta escrita deseja construir um pensamento em diálogo com a produção artística afro-brasileira, ampliando as percepções e sentidos em contextos implicados, contornando a força dos encontros das presenças, poéticas e teorias. Refletir as lógicas de inserção e circularidade, institucionalização, curadoria e seus espelhamentos.

Nesta perspectiva, a trajetória de Abdias Nascimento muito nos conta, por entre suas profundas camadas e implicações na historiografia das artes e também na evidência de nos situar diante de uma produção racializada, e que aqui na escrita endossa a reflexão para um pensamento amplo e elástico para as questões curatoriais contemporâneas, outras compreensões do campo artístico e suas muitas linguagens, que nos servem como pistas para as estratégias e práticas em devir. Abdias entra nessa ginga principalmente por sua plasticidade política, estética e a relevância de sua produção artística, contornada pelos diálogos com uma tradição da abstração geométrica, que em sua poética espelha as representações de símbolos da afro-religiosidade. O artista condensa e estende leituras visuais da cultura afro-brasileira irradiada nas representações, nas iconografias, símbolos e cores relacionadas a orixás.

Com uma alargada e influente produção e repertório de colaborações à população negra, seu nome e reflexão aparece ainda de modo tímido nos desdobramentos, nas costuras, referências no campo artístico-cultural e suas linguagens nas instituições e programas brasileiros. E, por isso, evidenciar esse legado, latente, é base e horizonte para as várias questões estéticas, contextos e políticas da população negra e racializada no Brasil.

A pintura Okê Oxóssi (1970) de Abdias Nascimento, nos possibilita reimaginar a bandeira nacional e seus aspectos, quando nos oferece uma visualidade outra para sua leitura e interpretação, Abdias verticaliza, redistribui os símbolos; inclui o arco e flecha e substitui a frase “ordem e progresso” por “okê okê okê okê” - símbolo e saudação ao orixá Oxóssi, uma divindade das religiões africanas, que representa o conhecimento e as florestas. Abdias nos revela outra perspectiva de símbolo e de construção para ideia de nação, moldada pela diáspora e por nossas heranças ancestrais. 
                                                                                                                                         
Rosana Paulino,
Pretuguês, 2023
                                                                                              

Com a ancestralidade em perspectiva, é importante se ater ao convite do Museu de Arte do Rio à artista Rosana Paulino para hastear a mais recente bandeira. Lugar “nobre” a ser ocupado por uma artista negra, que também sedimentou possibilidades outras de protagonismos e presenças negras no espaço através de sua individual “Rosana Paulino: a costura da memória” na instituição, em 2019, e por sua atual influência na produção afro-brasileira. Na bandeira, a artista inspirou-se em “Pretuguês”, termo formulado e partilhado pela filósofa Lélia Gonzalez. A obra foi criada especialmente para o MAR, e Rosana traz como imagem, uma mulher negra cuspindo espadas de Iansã, desdobrando reflexões sobre feminismo, lugar de fala da mulher negra e racismo religioso. Nas cores a artista evidencia as referências aos seus orixás de cabeça, o azul de Ogum e o vermelho de Iansã, que denota a camada ancestral afro-brasileira.

Erguer no topo, no alto, a palavra Pretuguês é afirmar o quanto de África carrega a língua portuguesa brasileira. Historicamente a resistência das pessoas negras escravizadas, se deu na luta, fugindo, se organizando, entre outras estratégias e formas, mas também resistiram através da fala. Rosana ao se colocar diante do tempo, enfrenta também suas violências, e através da obra também responde a neurose cultural de uma historiografia da arte branca e ocidental que factualmente soterra nossas línguas, heranças e simbologias.

Rosana Paulino tem como poética desestabilizar estruturas preestabelecidas a partir de suas imagens, e nos convida pelas inquietações visuais para os debates. Paulino reivindica o direito de pensar a racialidade, o grupo social, as reconfigurações óticas que se dão às visualidades, o tempo, o espaço e estrutura temporal nas quais situam e contextualizam suas composições estéticas. No caso de “geometria à brasileira” a artista ironicamente se implica a questionar o abstracionismo geométrico brasileiro, o colocando em diálogo com presenças retalhadas dessa construção. Rosana nos revela o quanto a história da arte brasileira não olhou para os contextos históricos, para a memória. Discussões que ganharam envergaduras nos últimos anos.
 

Rosana Paulino.
A geometria à brasileira: vermelho n. 3, 2022.

                                                                                             
Nas materialidades, a matriz africana é apresentada narrativa e visualmente com a utilização da pemba branca, material como o giz, utilizado em rituais de umbanda, enquanto a exploração de povos indígenas revela como a etnia sempre conformou as relações hierárquicas, de subalternidade, violentas relações de poder entre instituições e sujeitos no Brasil.

São muitas as maneiras e as formas de morte, e gostaria de sublinhar aqui sobre os aterramentos das presenças, das epistemologias, poéticas, literaturas, sobretudo em contextos das diásporas, dos povos originários e quilombolas - que dão novas percepções e envergaduras à luta brasileira através de uma condução inquieta do pensamento e da plasticidade, e nos provoca.

Convicto da herança dos quilombos, de nossos ancestrais africanos e africanas, nos implica recuperar a memória de Palmares no sentido quilombista - de ser e estar juntes na construção de fortalezas e inteligências - modo desenvolvido pela comunidade negra de reaver seu passado africano e afro-brasileiro. Escrever e revisar nossa história. É como nos (re)organizamos e resistimos no mundo, pensar o tempo em cronologias outras, narrando e performando nossas existências e seus mistérios.

Historicamente, a cultura nacional foi forjada por uma elite intelectual branca, o que nos move questionar a narrativa hegemônica, a contrapelo, nos apoiando em assuntos que nos situe para as fissuras da violência colonial, e nos conduza e refletir na antropofagia, metáfora implicada aos traços da formação da identidade brasileira, no sentido de devorar nossa própria história, esmiuçá-la, escavar até extrair as heranças essenciais que nos constitui.

Jaime Lauriano em “terra brasilis: invasão, etnocídio e apropriação cultural” propõe uma alternativa à narrativa vigente, caracterizada pelas fábulas como a democracia racial. O artista, em contraponto à ideia de descobrimento, sublinha em título a expressão: “invasão”, que nos posiciona de modo contundente na leitura do trabalho, que reflete as questões histórico-identitárias brasileiras - uma cronologia que antecede à colonização e reverbera até o presente.

   
Jaime Lauriano,
Terra brasilis: invasão, etnocídio e apropriação cultural, 2015.


O trabalho, bem como as costuras aqui, em escrita, se coloca a evidenciar as importâncias que se apresentam a nós na construção de um pensamento sobre arte, arte afro brasileira, diáspora, raça, gênero, classe e outros marcadores, que hoje denotam as dissidências que orientam e formam essa tal “geometria” extremamente lacunar e vazia de Brasil e suas incorporações.

À vista disso, a reflexão aqui conjura ventar o tempo, revirar escombros e levantar poeiras para extirpar as violências, apagamentos e subordinações lançadas sobre nós, nossos corpos, intelectualidades e nossa produção de vida, que circunscreve e alimenta todas as outras.

Bibliografia
Gonzalez, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. São Paulo: Revista Ciências Sociais Hoje, 1984.
Nascimento, Abdias. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira. In. Nascimento, E. L. (Org.). Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.





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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».