Colonialismo em Portugal


por Ana Catarina Zeferino Moura

Foto: Ana Catarina Zeferino Moura.
Estação de  Metro Reboleira. Lisboa.
2024


ver também: anti-monumento, arquitetura, estéticas decoloniales

           
           Que histórias nos contam os espaços e os objetos?

    As afirmações de Marcelo Rebelo de Sousa (1), em abril deste ano, sobre a responsabilidade que Portugal deve assumir em relação à sua história colonial, parecem ter contribuído para alargar um espaço de reflexão e discussão que, na verdade, se tem vindo a expandir cada vez mais nos últimos anos, deixando progressivamente de estar reservado ao pensamento académico. Este espaço tem acolhido diversas vozes – de diferentes áreas eespectros políticos – que contribuem para tornar o discurso sobre o colonialismo português mais acessível, comunicável, e até coloquial. Coincidência ou não, estas afirmações foram feitas no ano em que se celebra o 50º aniversário do 25 de abril, o que permite aprofundar a reflexão sobre as relações entre o fim da ditadura portuguesa e o processo de descolonização. No entanto, convém ter em conta que a história colonial de Portugal não se reduz aos anos do Estado Novo, mas que se inicia séculos antes e que tem repercussões até aos dias de hoje.

Como explica a professora Roberta Guimarães Franco (2) , o colonialismo não tem sido suficientemente “enfrentado”, pois apesar de o fim da ditadura do Estado Novo ter posto fim a uma ideologia oficial altamente opressiva, colonial e racista, as dinâmicas coloniais e racistas continuam presentes, sobretudo “na mentalidade interna” dos portugueses. Também Elísio Macamo (3) , numa conversa com António Rodrigues, levanta esta ideia, ao afirmar que o processo de descolonização deveria começar por ser feito internamente. O autor explica que, para si, mais importante do que os pedidos de desculpa formais ou as decisões em torno das reparações seria uma reflexão dentro do próprio país sobre a forma como o colonialismo violou os próprios valores nacionais. Ou seja, para o autor o processo de descolonização deveria começar por ser feito por nós, a partir de uma reflexão crítica sobre a (in)conformidade dos nossos feitos históricos com os nossos valores.

Nesta conceção, não basta abrir o discurso para fazer pedidos de desculpa formais, fechando-o e arrumando-o em seguida numa gaveta (como afirmou até Marcelo Rebelo de Sousa). O processo de descolonização passa também por rever que histórias estamos a contar e de que formas as contamos. Como esclarece a investigadora Nina Vigon Manso, os manuais escolares (4) continuam a apresentar narrativas racistas e de exclusão. É necessário observar criticamente a forma como a escola (5) está a contar o passado e, consequentemente, reformulá-la de modo a torná-la mais completa, sustentável e justa. Mas para além da escola, é também importante pensar na forma como os espaços públicos e os espaços culturais abordam e tratam a questão colonial.

A história, ao contrário daquilo que se convencionou pensar, é aprendida de muitas formas: não é apenas nas salas de aula (6) que nos confrontamos com o passado, com outros povos e culturas; a história também é contada através das coisas que estão à nossa volta, dos livros que lemos, dos filmes que vemos, das pessoas com quem lidamos ou dos espaços que frequentamos. O passado está inscrito no presente, tanto nos espaços em que vivemos como nos modos como vivemos; assim, tanto aquilo que nos rodeia como aquilo que nos constitui é marcado por traços históricos. Como afirma Kitty Furtado (7) , “somos o resultado do nosso passado e nessa medida ele está sempre presente, mesmo que esquecido”.

Deste modo, o passado vai-se-nos relevando de muitas e variadas formas, por vezes discretas e subtis, sendo que são essas revelações que dão corpo àquilo que consideramos ser a história. O conhecimento da história, nesta linha de pensamento, não se forma apenas por via de dispositivos teóricos, como aqueles utilizados nas instituições de ensino convencional, mas também mediante os espaços e os objetos (com as suas componentes visuais, sonoros ou olfativas) à nossa volta, que sensivelmente percecionamos e apreendemos.

Os espaços públicos têm, portanto, um papel ativo na transmissão de histórias. Seguindo esta conceção, torna-se ainda mais urgente olhar e pensar criticamente os elementos constituintes destes espaços – os monumentos, as estátuas, os museus, os nomes das ruas. Como afirma Aurora Almada e Santos (8) , “muitos espaços públicos continuam a remeter-nos para a glorificação do passado colonial”, o que tem vindo a ser criticamente analisado e demonstrado em vários estudos, como por exemplo aquele desenvolvido por Leonor Rosas (9). A importância das narrativas incorporadas nos espaços e nos objetos não deve ser menos prezada ao pensar e questionar a(s) história(s) que contamos bem como o modo como a(s) contamos. Ao fazê-lo, despreza-se o papel da perceção e dos sentidos na criação de conhecimento.

Curiosamente, são os artistas que mais se têm mostrado atentos a esta questão. Pode recordar-se, por exemplo, a obra O Barco (10) , da artista Grada Kilomba, constituída por uma instalação e uma série de performances, em que a artista questionava a história que tem vindo a ser contada em relação aos “descobrimentos”, convocando o lado dessa história que permanece, por norma, oculto.


Grada Kilomba, O Barco | The Boat, 2021.Comissioned by BoCA -Bienal of Contemporary Art and Kunsthalle Baden-Baden.Installation view at the MAAT -Museum of Art, Architecture, and Technology, Lisbon,Portugal. Photograph by Bruno Simão, courtesy of the artist.

A instalação de Grada Kilomba, apresentada em Belém junto ao rio Tejo, servia como um contraponto ao Padrão dos Descobrimentos, representando o fundo de uma nau com os corpos africanos que aí eram transportados, enquanto escravos, para outros continentes. Esta obra apresentava, portanto, uma narrativa diferente daquela apresentada pelo Padrão em relação à história das comumente chamadas “descobertas portuguesas”. Se nesta obra eramos confrontados com uma representação dos corpos africanos que eram violados, massacrados e desumanizados durante (e para) as “descobertas”, já no Padrão dos Descobrimentos somos confrontados com as figuras, como aquela do Infante D. Henrique, que contribuíam para o comércio de escravos.

Padrão dos Descobrimentos, Lisboa. Fonte: https://padraodosdescobrimentos.pt/

Em relação a este monumento, convém também ter em consideração o contexto em que foi construído. A Exposição do Mundo Português – para aqual uma versão temporária do Padrão foi construída – pretendia mesmo exaltar e celebrar este período histórico nos quais ocorreram inúmeros episódios de violência e brutalidade (não esquecendo que “Portugal foi o maior traficante no comércio transatlântico de pessoas escravizadas.” (11)). Estas histórias estão, portanto, representadas em monumentos como o Padrão dos Descobrimentos, e a nossa capacidade para as percecionar, captar e interiorizar não deve ser desprezada. Os espaços e os objetos, como habilmente têm mostrado os artistas através de instalações, performances ou filmes (12) , têm a capacidade de falar, de nos contar histórias, de nos transmitir ideias, de criar sentidos e significados. Por essa razão, devem ser fortemente tidos em conta aquando das reflexões sobre a história e o seu ensino.

Notas:
1. https://www.publico.pt/2024/04/27/politica/noticia/marcelo-defende-portugal-obrigacao-liderar-processo-reparacoes-20884882 https://www.transcript-open.de/doi/10.14361/9783839474792-0133 
2. https://www.transcript-open.de/doi/10.14361/9783839474792-013
3. https://www.publico.pt/2024/05/01/mundo/noticia/reparacoes-portugal-antigas-colonias-2088866?ref=podcast-terra-cacos&cx=stack
4. https://www.publico.pt/2017/09/09/sociedade/noticia/com-que-direito-se-apagam-as-criancas-naobrancas-dos-manuais-1784746
5. https://www.publico.pt/2024/07/15/sociedade/entrevista/escravizacao-pessoas-financiou-empresa-descobrimentos-20968056
6. https://www.publico.pt/2023/03/16/culturaipsilon/noticia/peca-teatro-juvenil-questionar-descobrimentos-maiusculas-20426837
7. https://www.publico.pt/2022/12/31/opiniao/opiniao/reparar-presente-atraves-memoria-20328198
8. https://gerador.eu/ensaio-portugal-e-a-limitada-reflexao-sobre-o-seu-passado-colonial/
9. https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-leonor-rosas-a-historia-de-lisboa-e-branca-masculina-e-de-classe-alta/
10. https://www.maat.pt/pt/exhibition/grada-kilomba-o-barcothe-boat
11. https://www.publico.pt/2024/04/24/politica/noticia/portugal-pagar-custos-escravatura-crimes-coloniais-marcelo-2088143
12. https://doclisboa.org/2024/filmes/dahomey/


bibliografia
Guimarães Franco, Roberta (2024). Qual 25 de Abril, qual Portugal, 50 anosdepois?. Questões de colonialidade na literatura portuguesa após 1974. In: Teresa10 https://www.maat.pt/pt/exhibition/grada-kilomba-o-barcothe-boat11 https://www.publico.pt/2024/04/24/politica/noticia/portugal-pagar-custos-escravatura-crimes-coloniais-marcelo-208814312 https://doclisboa.org/2024/filmes/dahomey/

Pinheiro/ Robert Stock/ Henry Thorau (Eds.), Fünfzig Jahre Nelkenrevolution (287-306). Bielefeld: transcript Verlag. https://doi.org/10.14361/9783839474792-013

Rosas, L. (2023). De Quem Se Esqueceu Lisboa? A luta pela inscrição damemória anticolonial e antirracista no espaço público. Edições Humus.




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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».