Corpo


por Fabián Cevallos Vivar


ver também: arquivo, experiências epidérmicas

           
           Elevado a categoria de filosofia primeira e fundamento geral das ciências o pensamento dicotômico racionalista da modernidade ocidental gerou um tipo de violência onto-epistemológica que subsiste até hoje. Na sua constituição mais geral, o discurso cartesiano criou um sentido comum hegemônico sobre o corpo que o define como matéria ou espaço de dominação/expropriação. As características centrais deste tipo de pensamento são: 1) o controle e regulação de corpo-espaços colonizados a favor da construção do conhecimento e corpo universal; e, 2) o afastamento de todo o subjetivo, corporal e espacial para uma espécie de processo de purificação do saber.

Controle e isolamento são os dois mecanismos que servem para manifestar o domínio sobre corpos e espaços racializados e sexo-genéricos não normativos. Assim, a ideia capitalista/moderna de que: “Poder corporal é poder laboral” vai contribuir a regular e converter em maquina aqueles corpos dominados desde o século XV com o objetivo de possibilitar o processo de acumulação da riqueza. No entanto, as historias do corpo são múltiplas, não só se trata de estudar as consequências dos poderes econômicos sobre os corpos, mas de uma reconstrução historiográfica dos sistemas de dominação entrelaçados (heteropatriarcado, colonialismo e capitalismo), assim como as formas de resposta e ação que os corpos tem contra estas formas de opressão.

Oyèrónkẹ Oyêwùmí tem chamado como raciocínio corporal a aquelas identidades sociais que estão ancoradas no determinismo biológico, para a autora, dualidades como natureza e cultura, público e privado, visível e invisível, tem o seu correlato na ordem hierárquica e dualista do corpo masculino e feminino. Em outras palavras, a construção da diferencia e hierarquia social pressupõem o corpo e a sua visualidade -órgão principal do corpo na modernidade colonial. Assim, os corpos das alteridades são colocados como fonte primeira de exposição para o conhecimento eurocêntrico. Daí que as características genéticas e biológicas, ocupem uma posição de superioridade para o olhar ocidental. Esse é, provavelmente, um dos motivos pelos quais na narrativa histórica eurocêntrica exista uma preocupação central pelo corpo, cuja consequência é a construção de discursos somatocêntricos em várias áreas do saber.

Sendo o corpo o primeiro lugar de violência epistêmica, onde subsiste a ferida colonial, é também o espaço privilegiado para uma liberação. Ao contrário da forma bajtiana de um corpo humano pantagruélico, que engole o mundo, o que se propõe aqui é uma caracterização de corpo expansiva e não antropocêntrica: ele se move junto com o mundo, é parte dele, em complementariedade, com outras materialidades/corporalidades mutuamente vinculativas. Desta forma, os processos de consciência passam, em primeiro lugar, pela corporalidade.

“Corpo faz de mim um homem que pergunta” é a sentencia com a que Fanon conclui a sua obra “Pele negra, mascaras brancas”, provocando um giro anti-colonial ontológico e epistemológico. O autor desenvolveu assim não só uma critica as ausências dos corpos subalternizados nas narrativas, mas a possibilidade de fala, de pensamento e de escuta das suas sensibilidades. Não podem ser esquecidas as violências e os sofrimentos cotidianos. Em palavras de Gloria Anzaldúa se trata de corpos cheios de adrenalina: “trazemos para casa a raiva e a violência que encontramos na rua e os jogamos uns contra os outros” (Anzaldúa, 1983: 229).

O corpo é o espaço de ação, transformação e limite da exploração. Sendo ele individual e coletivo, a sua intervenção é no âmbito micro e macro político. Proponho três momentos para uma metodologia dos corpos: a cotidianidade, a biografia e a historia dos povos. Vozes, gestos, sons e cheiros são as fontes de conhecimentos que vão contribuir para representar imagens em confronto com vários tipos de espaços, histórias e linguagens. Daí que as respostas metodológicas e práticas passem sempre pela escrita com o próprio corpo, de facto, se trata também de um problema corpo-grafemático.

Como proteger o corpo perante as invasões ontológicas e epistemológicas nas politicas da morte? Nem leituras biologistas, nem só representação performativa ou textual do corpo contra a norma, pois ambas guardam silencio sobre as relações de poder e as articulações com os processos identitarios. “Como falar da nossa “performance” de género, raça e idade sem o reconhecimento da compulsão gerada pelas formas de exploração e castigo inscritas nos corpos?” (Federici, 2022:16). 

Bibliografia:
Anzaldúa, Gloria (1983). “La Prieta”. In Moraga, Cherríe, Anzaldúa, Gloria. This bridge called my back: writings by radical women of color. Watertown: Persephone Press.
Federici, Silvia (2022). Más allá de la periferia de la piel. Repensar, reconstruir y
recuperar el cuerpo en el capitalismo contemporáneo. Em digital: Ediciones Corte y Confección.
Oyêwùmí, Oyèrónké (2001). The invention of women: making an African sense of western gender discourses. Minneapolis, University of Minnesota Press.
 






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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».