Experiências epidérmicas


por Millena Lízia


ver também: fronteira - corpo - corpos filmico

           
           Começo a elaborar caminhos de organização para um entendimento do que poderiam ser as experiências epidérmicas entre 2017 e 2018. Na ocasião, eu me debruçava na escrita acadêmica como mestranda do programa de Pós-graduação em Estudos Contemporâneos das Artes, pela Universidade Federal Fluminense (BRA). Tenho para mim que a relação que estabeleço com a expressão se associa a um sentimento de inadequação e com as dificuldades de enquadramento da pesquisa nas bases de saberes que inicialmente me foram apresentadas – uma relação, aliás, um tanto condizente com os constrangimentos (para dizer o mínimo) que pessoas não pertencentes aos grupos hegemônicos costumavam passar (?) no território universitário, em que nossas proposições discursivas e nossas construções subjetivas (quando não as físicas, propriamente) estão sob risco e em campo batalha. Como artista-pesquisadora, vale dizer que este campo de batalha se faz também no terreno das Artes Visuais. Nos processos vivenciados, me pareciam que as plasticidades com as quais trabalhava me davam notícias de suas particularidades em relação aos jogos de poder em curso, e também de suas dificuldades e inadequações – embora estas últimas pudessem se manifestar propositalmente, como consequência de quem estava apreendendo o que passava ao redor, mas que não se reconhecia ali e buscava não se submeter.


Quando habitamos espaços de poder sem de fato ter o poder em nossas mãos – tratando poder, neste caso, como as esferas das possibilidades – acabamos por negociar meramente com as concessões, que nos alertam sobre suas imprevisibilidades, impermanências, inseguranças… nos alertam, até mesmo, para o fato de que este terreno em que pisamos nos lança para um jogo (o de poder) perdido, ainda que, em alguns momentos, as ilusões operem – o que faz parte do espetáculo. Como mérito é pra poucos ou, dependendo, com prazo de validade, não tarda para que os cerceamentos cheguem, ferindo nossas existências, minando nossos ânimos e vitalidades, dizendo que você não é.


Mas teria como reagir de forma diferente, que não a visceral, mostrando que ainda estamos vivos pra quem duvide (apesar dos esforços para o contrário)?


– Mas não sou eu?


Não sei bem se é possível recorrer à literatura anticolonial, e à problemática das existências negadas (compulsória e metodologicamente), sem passar pela reconhecida frase "O negro não é um homem" de Frantz Fanon. Contudo, nessa discussão, não me é possível deixar de trazer que um século antes, em seu discurso que se tornou um marco para a luta das mulheres, a Sojourner Truth proferiu seu questionamento emblemático – "Não sou eu uma mulher?" – gerando na ocasião (e nas reverberações históricas) uma tensão em relação aos discursos proferidos pelos homens e mulheres brancas.


Em debates mais recentes, a socióloga feminista María Lugones, em suas notáveis contribuições acerca das categorizações das existências por meio da colonialidade do ser, trata de aproximar as formulações dos dois autores. Apesar das coerências dialógicas na construção do seu debate, foi com espanto que li a resposta da socióloga argentina à Sojourner Truth, que responde com um "não" ao questionamento centenário que é mais do que retórico, pois ele é desobediente – e de uma desobediência que faz escola, pois há toda uma didática aí. Diante de esquemas delirantes em relação às nossas existências e de todos os absurdos e abusos ditos e cometidos sobre e contra nós, como não adotar, senão a desobediência, o sarcasmo, a ironia? Pois, às vezes, só dando a louca mesmo, quando te fizerem de louca (nos deboches, no escárnio, na dissimulação, no cinismo, nas lógicas sonsas), nessas estruturas que investem nos nossos adoecimentos, inclusive romantizando a própria loucura.  E não haveria resposta possível, ou mesmo desejável, pra quem assumiu uma postura contra às (mono)culturas.


Zona concomitante de contato, de lesão, de ferida, de contágio, de cicatrização, de resistência, de porosidade, proteção, elasticidade e produção sensível. Embora tenha partido de vivências e reflexões acerca de minha própria pesquisa, a adoção da expressão experiências epidérmicas tem como proposta possibilitar um recurso crítico que aponte para as diferenças e particularidades da produção artística realizada por aquelas e aqueles que são atravessados pelos marcadores raciais colonizados – entendendo a pele como maior órgão não tanto por suas características biológicas, mas porque daí se forja na história plural da modernidade toda uma organização social planetária que se faz valer repleta de pormenores e maniqueísmos minuciosos, do global ao (inter)subjetivo.


Contudo, nessas lutas por ser, muitas das vezes me pego retornando para as relações (e tensões) evidenciadas entre o "Não é." e o "Não sou eu?". Talvez tudo já esteja aí, ou talvez seja apenas uma parte que possibilite que acessemos o todo, dessa história secular de vidas em risco. Algo, aliás, que é bem maior do que está na superfície, que nunca nos foi firme ou segura o bastante e que, por isso mesmo, somos levadas não apenas a inventar onde e como pisar, mas a fazer música das nuvens e do chão, a nos criar no fogo, reinventar a roda, ser encantadas pelas serpentes, perguntar para a pedra como se faz o caminho conversando com os passarinhos, aprendendo e inventando, por tanto, quem somos, nos somatórios de nossas diferenças.


Experiências epidérmicas se filia, ainda, às propostas de saberes pelas experiências vividas, entendimento tão caro aos movimentos sociais feministas, principalmente o das mulheres racializadas. O que me coloca em revisão desse termo a todo o tempo enquanto pulso. O que é agora pode não ser depois. E que assim seja. Que a gente possa realizar conjuntamente as revisões das experiências epidérmicas.


Bibliografia:

Fanon, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Trad.: Renato da Silveira. Salvador: EDUFBA, 2008.
Lugones, María. Hacia un feminismo descolonial. In: La manzana de la discordia, v. 6, n. 2, julho-dezembro de 2011.
Música das nuvens e do chão. Cérebro Magnético, álbum, 1980. Por Hermeto Pascoal. WEA, Brasil. Música.
Truth, Soujorner. E não sou uma mulher?. Trad.: Osmundo Pinho. Austin, 2014. n.p. Disponível em https://www.geledes.org.br/e-nao-sou-uma-mulher-sojourner-truth/





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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».