Memória


por Denise Santos



Luba. Lukasa Memory Board, late 19th or early 20th century. Wood, metal, beads, 10 × 5 3/4 × 2 1/4 in. (25.4 × 14.6 × 5.7 cm).
Brooklyn Museum, Gift of Marcia and John Friede, 76.20.4.
Creative Commons-BY (Photo: Brooklyn Museum, 76.20.4_view1_PS9.jpg)

ver também: Anti-racismo, Arquivo, Patrimônio

           
           Na minha infância, o ato de reviver memórias se manifestava como uma mistura de curiosidade e nostalgia, uma busca por preservar todos os momentos e pessoas negras que desempenharam papéis fundamentais no meu crescimento. Sentar no sofá no meio de um dia de limpeza e folhear as páginas dos álbuns de família era um ritual que nutria a nossa existência e celebrava a nossa história. Naqueles momentos, inúmeras histórias ganhavam vida, feições familiares eram reconhecidas, e a pausa que se seguia, onde dançávamos ao som de músicas de Cesária Évora, Grace Évora, Ildo Lobo, Tito Paris, acrescentavam um recorte de alegria que faz parte das minhas memórias de criança. A migração vivenciada pela minha família carrega consigo a determinação de não esquecer o que compôs essa jornada, criando uma série de "continuidades e descontinuidades de memórias, histórias e identidades" (Sousa, s.d.), numa outra geografia. Por meio desses instantes e mudanças, crescia a minha definição de memória.

Durante os meus anos de escola, vivenciei uma sensação de não lugar, ao deparar-me com um sistema que continuamente negligenciava ou omitia a importância e riqueza da presença negra, o que contrastava fortemente com a alegria que sentia ao folhear os álbuns de família na infância. Entre essas armadilhas mnemónicas apresentadas na escola, encontrava o heroísmo de presenças e ausências históricas, que mais tarde compreendi que eram elementos que contribuíam para sustentar estruturas e sistemas de desigualdade em fatores sociais, económicos, culturais, de género e raciais. Estas tramas ignoram o arquivo vivo e a sua reprodução e repetição de memórias, como arma essencial para a sobrevivência identitária. Reconhecendo que a memória da comunidade negra e pessoas não brancas é um ato político e que estas viagens no tempo e espaço, fazem com que a lembrança seja desejada e necessária, e isso reflete-se em diversas áreas de intervenção, incluindo a arte.

Dispositivos visuais mnemónicos são recorrentes na cultura negra com o propósito de preservar heranças, identificamos os símbolos Adikra, o panu di terá, o artesanato entre outros que tal como o Lukasa, resultam em quadros de memórias. Estas formas de expressão criativas sublinham a importância da arte, da memória coletiva e revelam a oralidade nas suas leituras e re-leituras, como fonte de partilha de elementos e histórias das culturas africanas.

Assim, transportamos connosco referências ancestrais, e arquitetamos uma poética da memória que acresce ao dialético e vocabulário da identidade na contemporaneidade, o que valida as inúmeras performances da oralidade que passaram de gerações em gerações, bem como o conhecimento, a cultura e a história. Essa dinâmica de experiências coloca o corpo como o epicentro da produção dessa memória, incentivando a reflexão sobre como as suas ações transcendem as barreiras de espaço e tempo (de maneira não linear). Para Leda Martins essa é uma ação orgânica nas vivências negras, o que é realçando no seu artigo Performances da oralitura: corpo lugar de memória (2003), onde a autora defende:

“Minha hipótese é a de que o corpo em performance é, não apenas, expressão ou representação de uma ação, que nos remete simbolicamente a um sentido, mas principalmente local de instrição de conhecimento, conhecimento este que se grafa no gesto, no movimento, na coreografia; nos solfejos da vocalidade, assim como nos adereços que performativamente o recobrem. Nesse sentido, o que no corpo se repete não se repete apenas como hábito, mas como técnica e procedimento de inscrição, recriação, transmissão e revisão da memória do conhecimento, seja este estético, filosófico, metafísico, científico, tecnológico, etc.” (p.66)

Com isso, podemos afirmar que cada um de nós atua tanto como produtor quanto reprodutor de álbuns de memória, ressaltando que as nossas performances revelam o que os textos muitas vezes escondem, criando encruzilhadas epistemológicas que contribuem para o nosso crescimento coletivo. Nesse contexto, a performatividade emerge como uma fonte poderosa de cura e empoderamento, observada em práticas tanto individuais quanto coletivas, que servem como instrumentos de resistência e transformação. Como resposta às estratégias sistemáticas de apagamento, a máxima "juntos somos mais fortes" transcende a luta por justiça e igualdade, destacando a importância da organização intelectual, do apoio emocional e estrutural, bem como do acompanhamento físico e psicológico que corpos não brancos necessitam para lidar com as consequências das armadilhas mnemónicas que historicamente os têm afetado. Assim, entendemos que:

“O coletivo superpõe-se, pois, ao particular, como operador de formas de resistência social e cultural que reativam, restauram e reterritorializam, por metamorfoses emblemáticas, um saber alterno, encarnado na memória do corpo e da voz.” (Martins, 2003, p.73)

A ação coletiva se harmoniza como um espaço de expressão que guardo na memória, lembrando- me das fotografias, receitas, momentos de convívio e muito mais elementos e momentos. Uma linguagem que faz parte do nosso leque de atos de resistência enquanto negros migrantes e descendentes, reconhecendo que:

“Somos os filhos daqueles que aqui estiveram antes de nós, mas não somos seus gêmeos idênticos, assim como não engendraremos seres idênticos a nós mesmos.(...) Desse modo, o passado torna-se nossa fonte de inspiração; o presente, uma arena de respiração; e o futuro, nossa aspiração coletiva.” (Thiong’o, 1997, p.139 citado por Martins, 2003)

O ato que se iniciou como uma curiosidade pessoal de reler fotografias de família expandiu-se para abraçar múltiplos significados sobre o valor da memória nas vidas negras. Este processo destacou a relevância tanto no nível individual quanto coletivo, estendendo-se a dimensões temporais que abrangem uma contínua transcendência do passado, abraçando o presente e apontando para o futuro. Essa jornada reafirma que a memória é, igualmente, uma maneira de dar voz aos movimentos familiares de resistência, que se equiparam muitas vezes à nossa existência negra.

bibliografia
Martins, L. (2003). Performances da oralitura: corpo, lugar da memória. Letras, (26), 63–81. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2176148511881
Souza, J. de (s.d.) Afrodescendência: identidade desvelada na memória. In.: III Simpósio Nacional Discurso, Identidade e Sociedade (III SIDIS). Dilemas e desafios na contemporaneidade.
Thiong’o, Ngũgĩ wa (1997) Writers in Politics: A Re-engagement with Issues of Literature and Society



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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».