Movimento


por Inês Zinho Pinheiro


Imagem: Movimento
Moss Dean
Foto: Genevieve Reeves

ver também: Somateca, Desenho, Espacialidade

           
           Já há algum tempo que comecei a utilizar o termo movimento, em vez de dança, quando penso, escrevo e falo sobre a minha prática. Parece-me ser uma palavra mais aberta, inclusiva e convidativa para se explorarem processos cinestésicos. Ao pensar nas possibilidades que surgem com o movimento dançado, tenho em conta o  ‘movimento somático’ que apela à tomada de consciência corporal e à atenção sobre o ‘corpo próprio’, desafiando as normas hierárquicas/estéticas da dança, evitando excessos, sublinhando a lentidão e a baixa intensidade e prestando-se assim ao autoconhecimento e à inclusão na dança (Ginot, 2013).

Simultaneamente, quando penso em movimento, tento afastar-me das ‘técnicas’ específica da dança, enquanto programas sistemáticos de instrução que estudam o corpo percecionado, organizando a informação que apresenta, e relacionando-a com “corpos demonstrativos e ideais” (Foster, 1997: 238).

Quando penso em movimento, tento também prestar atenção ao seu ‘eco’ que permanece interiormente no corpo, ao interrompermo-lo. Esta paragem faz com que deixe de existir movimento, mas não ficamos apenas no vazio, se tomarmos atenção ao tal ‘eco’ que permanece nos nossos corpos. Para pensar o que é movimento, assim como para imaginar formas de negociação instigadas através do movimento dançado, torna-se iminente incluir a sugestão de André Lepecki (2013) relativamente à tarefa da bailarina que tem particular urgência na sociedade em que vivemos, que “redefiniu todo o campo político-social no que diz respeito à questão de se movimentar livremente, de imaginar e de pôr em prática uma política do movimento como uma “coreopolítica da liberdade” (p. 15). Esta nossa capacidade de resistência em movimento e a nossa necessidade de criatividade, assim como a premência que sentimos da participação dos outros, anima-me para pensar e experimentar o que poderá ser coreopoliticar no âmbito da investigação de exploração do movimento, mesmo tendo consciência do estado quase apocalíptico da sociedade atual.

De forma antagónica, Lepecki (2013) propõem uma definição do ‘movimento coreopoliciado’, enquanto “qualquer movimento incapaz de quebrar a reprodução interminável de uma circulação imposta de subjetividade consensual, onde ser é encaixa num padrão pré-coreografado de circulação, corporeidade e pertença” (p. 20). Esta dinâmica faz emergir uma ‘coreografia diária de conformidade’, por conduzir a um “empobrecimento da imaginação coreográfica”. Em oposição à coreopolícia, a coreopolítica “requer uma redistribuição e uma reinvenção dos corpos, dos afetos e dos sentidos através dos quais podemos aprender a movermo-nos politicamente, a inventar, a ativar, a procurar ou a experimentar um movimento cujo único sentido (significado e direção) é o exercício
experimental da liberdade”.

Parece-me ser neste contexto que a exploração do movimento pode ter lugar, em que cada pessoa possa aceitar, ou rejeitar, sugestões feitas por outrem, facilitando caminhos, que surgem a partir da forma como cada pessoa escolhe aceitar ou rejeitar essas sugestões. Por sua vez, tais trajetórias cinestésicas podem conduzir a momentos de consciência do ‘corpo próprio’, a situações em que fazemos escolhas coreográficas que, estão fora do controlo dos critérios impostos pela coreopolícia, e que talvez nos aproximem da criação coreopolítica, justamente por experienciarmos atividades que têm a potencialidade de nos guiar a encontrar
um autoconhecimento cinestésico.

Similarmente, quando penso em movimento na relação pedagógica chamo a atenção para os processos (e.g. qualidade do movimento, pensamento no movimento, exploração do movimento), para promover o processo de pensar, em vez do método de evacuação em que, antes se enche o recipiente e depois os estudantes esvaziam esse conteúdo em testes, para avaliação.

A fim de me orientar para o fim destes devaneios cinestésicos, enfatizo o paralelismo entreo movimento dançado e a escrita, ambos exercícios de transformação, trilhando um caminho que se vai desdobrando, tornando-se labiríntico. Encontro assim sintonia com a ideia de Jacques Rancière (2021) sobre a dupla tradução que acontece entre a bailarina e o espetador, criando “textos possíveis que o movimento escreve sem palavras” (p. 109).

bibliografia
Foster, S. L. (1997). Dancing Bodies. In J. C. Desmond (Ed.), Meaning in Motion: New Cultural Studies of Dance (pp. 235-257). Durham: Duke University Press.
Ginot, I. (2013). Douceurs somatiques. Repères, cahier de danse, Vol. 32, 21-25.
Lepecki, A. (2013). Choreopolice and Choreopolitics: or, the task of the dancer. The MIT Press, Vol. 57, N. 4, 13-27.
Rancière, J. (2021). Tempos modernos: arte, tempo, política. São Paulo: n-1 edições.



perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».