Visualidades camponesas


Leandro de Souza Silva


Trabalhadora rural, assentamento Zumbi dos Palmares - RJ
Foto: Leandro de Souza Silva


ver também: Espacialidade, Corpo-território, Educação Estética Visual

           
           Esse escrito parte da imagem dos sulcos e bancos na terra como preparo para o plantio. De forma alegórica, essa mesma imagem anuncia os saberes e conhecimentos camponeses, cuja estética revira e põe em suspensão certezas sobre o modo de vida em locais que distam da centralidade urbana. A imagem do lançamento das sementes por entre os rasgos no terra, inspira reflexões a respeito da diversidade de aprendizados em solo camponês e afirma a visualidade camponesa como inspiração para um mundo menos desigual e mais justo.

Sem pressa e resistindo às contingências da vida, assim como o germinar de uma semente, a imagem aponta para a ideia de uma visualidade apropriadamente camponesa, que se transforma, se modifica e constantemente se refaz. Dá a ver uma experiência estética que faz brotar formas desobedientes de ensinar e aprender. Ademais, reinvindica a sua participação e contribuição para um mundo constituído de imagens visuais e, por meio delas, indicar possibilidades de organização do mundo.

Se por um lado o acesso a direitos básicos como direto à terra, cultura e educação são constantemente ameaçados no contexto social brasileiro, por outro, a visualidade experenciada no campo confere forma ao pensamento, fabulações e imaginações daqueles que resistem aos efeitos violentos da lógica capitalista. Essa perspectiva semeia o entendimento de que as manifestações visuais ocorridas no campo, enquanto forma, questionam a função da estética determinada hegemonicamente colonizadora como única, legítima e institucionalizada. E, nessa direção, evidenciam processos educativos, culturais e estéticos pautados pelo saber e conhecimento popular e, por conseguinte, modificam estruturas que apagam e silenciam vozes e olhares que reagem ao modelo dominante.

A ideia de uma estética própria no/do campo opõe-se ao ideal de representação branco e heteronormativo, bem como da perfeição, apreciação do belo clássico europeu e do juízo de valor impostos pelo sistema dominante. Logo, olhar para visualidades que acontecem no campo, implica compreender uma experiência visual capaz de ensinar sobre um projeto de sociedade que valoriza os saberes e conhecimentos de todas e todos. Essasimagens-problema, fruto de visualidades nada inofensivas, denunciam o modelo socioeconômico em vigência que mói gente, destrói e suga a energia vital humana.

Os esforços para criação do conceitovisualidades camponesas partem de vivências e inquietações de pesquisa no contexto do doutoramento em curso realizado no assentamento Zumbi dos Palmares, na região norte do estado do Rio de Janeiro, no Brasil. Tal conceito propõe enlaces entre os postulados teóricos da Cultura Visual (MIRZOEFF, 1999), Espacialidades (SANTOS, 2008) e Educação Popular (BRANDÃO; FAGUNDES, 2016). De forma interdisciplinar, entrecruzam-se por entre visualidades e participam de contínuas transformações não restritas ao espaço geográfico camponês. Em rebelde reconstrução, reconfiguram relações culturais, educativas, estéticas e socioeconômicas pelas ações visuais de sujeitos que seguem lutando para da terra viver.

A visualidade camponesa seria, portanto, como um tipo de tática que se opõe, impõe e denuncia os desmandos que esmagam diferenças. Suas criações funcionariam como estratégia estética, as quais exploram as ambivalências, interstícios e lugares de resistência na vida cotidiana. Ao participar da vida ordinária, essa visualidade evoca pensamentos, ideias, informações e imagens, como num campo de batalha narrativa, discursiva e estética. Nesse sentido, para além do sinônimo de imagem (pictórica ou fotográfica, por exemplo), o conceito de visualidade converge uma diversidade de aspectos que inclui, mas transborda o visual. Funcionam como subversões do ideal de beleza ou avanço tecnológico típico de centros urbanos, cujo resultado seria um modo que torna visível como as técnicas, pensamentos e criações efetivam os desejos, os sonhos e as utopias de quem vive no/do campo.

Em territórios enraizados na luta pela terra e direitos, a criação estética se presentifica em todo seu processo e existência. Isto é, a existência e a reexistência da vida na área rural tensiona além da questão política e de direitos humanos, a arte e a cultura em seus processos orgânicos de ensino.

Fruto dessa elaboração, a criação de visualidades na espacialidade rural poderia evidenciar contornos estético-pedagógicos quando ensina sobre diversidade e inclusão sociocultural, por exemplo. Ao passo que esses processos estéticos revelam dimensões do tecido social, eles anunciam as transformações urgentes e sonhadas por tantas pessoas.

Ou seja, o que uma casa e o seu quintal, pinturas em um muro, o paisagismo doméstico, as dinâmicas de plantio, as fotografias numa caixa ou indumentárias feitas à mão podem desvelar sobre a vida no campo e seus modos de fazer estético? Quando o visual é contestado, debatido e confrontado, as possíveis respostas dessa questão certamente desobedecem a discursos dominantes ao acolher as subjetividades do povo que vive da terra e desestabiliza narrativas que obliteram a força imanente camponesa.

A visualidade camponesa evidencia uma práxis visual que dá a ver algo sobre a vida vivida com dignidade, criticidade e alegria, pois valoriza o pensamento que resiste aos sistemas de dominação. Ao se transformar no espaçotempo do meio rural, ela se reinventa cotidianamente. E, nesse solo fértil, em seus sulcos e flancos na terra, isto é, em sua aparência, contradições e existência, planta a esperança de um mundo melhor e colhe o bem-viver.


bibliografia

BRANDÃO, C. R.; FAGUNDES, M. C. V. Cultura popular e educação popular: expressões da proposta freireana para um sistema de educação. Educar em Revista, p. 89-106, 2016.
MIRZOEFF, N. An introduction to visual culture. Psychology Press, 1999. 0415158761.
SANTOS, M. Espaço e método. 1ª ed. EDUSP, 2008.





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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».