Corpo-fílmico — patologias fílmicas


por Lucas Camargo de Barros


Cemitério do Esplendor, Apichatpong Weerasetakul (2014)

ver também: experiências epidérmicas, arquivo, corpo 
       
O cinema é oriundo de um projeto de mundo científico, industrial-burguês, rígido e objetivo. Sua invenção não aconteceu de maneira romântica, idílica ou ocasional. Pelo contrário, o afinco com que ricos industriais investiram no desenvolvimento de uma máquina de produzir imagens em movimento diz muito mais sobre uma lógica econômica do que sobre o mundo do imaginário. No entanto, a rigidez e o utilitarismo da máquina que apreende o mundo através da luz é capaz de se esvair em segundos quando adentramos a sala escura onde esta estranha experiência coletiva acontece. O caráter onírico, fantasmagórico e altamente identificável que um filme produz no sujeito acaba por aterrar e ludibriar todo aquele aspecto cientificista do século XIX. O cinema, essa máquina hipnótica, conjuga os dois aspectos de maneira indissociável. É desta fissura de afetos tão contraditórios que gostava de falar sobre uma outra ideia de corpo-fílmico baseada em minha pesquisa sobre Patologias Fílmicas.

A fim de encontrar ecos deste conjunto de significantes e significados dentro cinema, proponho dois termos protagonistas para esta reflexão: as "patologias fílmicas" (o uso  inventivo da mise-en-scéne, da montagem e de elementos extra-diegéticos, ou seja, a exploração dos aspectos formais cinematográficos em filmes com personagens adoecidos) e as "narrativas doentes" (histórias que, ao serem contaminadas pelas tais patologias fílmicas, acabam por subverter a narrativa hegemônica).

Interessa aqui entender como as doenças nos filmes analisados se comportam e vão, aos poucos, contaminando a própria forma fílmica. Susan Sontag em "A doença como metáfora" (1984) afirma que "todas as pessoas vivas têm dupla cidadania, uma no reino da saúde e outra no reino da doença.” (Sontag, 1984).

É deste atravessamento, entre fronteiras invisíveis, que esta ideia de outro corpo-fílmico, neste caso mediado pela patologia, que proponho descrever um breve exemplo: “Cemitério do Esplendor”, de Apichatpong Weerasetakul (2015). A sinopse oficial disponibilizada pela produtora Kick the Machine:

Soldados com uma misteriosa doença do sono são transferidos para uma clínica temporária em uma antiga escola. O espaço cheio de memória torna-se um mundo revelador para a dona de casa e voluntária Jenjira, enquanto ela zela por Itt, um belo soldado sem visitantes da família. Jen faz amizade com a jovem médium Keng, que usa seus poderes psíquicos para ajudar os entes queridos a se comunicarem com os homens em coma. Os médicos exploram maneiras, incluindo cromoterapia, para aliviar os sonhos perturbados dos homens. Jen descobre o caderno enigmático de Itt com escritos estranhos e esboços de plantas. Pode haver uma conexão entre a síndrome enigmática dos soldados e o antigo local mítico que fica abaixo da clínica. Magia, cura, romance e sonhos fazem parte do terno caminho de Jen para uma consciência mais profunda de si mesma e do mundo ao seu redor. (1)

Weerasethakul parte de uma narrativa estranhamente realista para compor uma série de jogos de sonho e realidade, criando uma metáfora política disforme e onírica sobre a Tailândia contemporânea. No filme, a patologia protagonista é uma estranha doença do sono que ataca soldados em uma pequena aldeia da Tailândia abrigados em uma antiga escola transformado em um hospital improvisado.

Em contraposição à narrativa "saudável" - tipicamente aristotélica e da jornada do herói que domina a cinematografia mundial -, o conto fantástico de Weerasetakul acaba por se contaminar por essas "patologias fílmicas” e somatizam os afetos de seus personagens adoecidos, gerando um corpo fílmico estranho - a "narrativa doente". A partir de concretas disfunções patológicas-emocionais de seus personagens, os filmes acabam por "adoecer" formalmente.

Em Weerasethakul, a Tripanossomíase africana (doença do sono) abre terreno para uma dramaturgia porosa com suas fusões de sonho/realidade. A figuração de corpos adoecidos torna-se uma aliada para alcançar a subversão da linguagem cinematográfica dentro de sua narrativa. Ou seja, os sintomas de cada personagem são fundamentais para a criação dos aspectos narrativos e formais inventivos neste exemplo.

Neste choque entre territórios do imaginário e daquilo que julga-se puramente científico, a fissão entre tais fronteiras invisíveis fica ainda mais nebulosa.

Para que a experiência clínica fosse possível como forma de conhecimento foi preciso toda uma reorganização do campo hospitalar, uma nova definição do estatuto do doente na sociedade e a instauração de uma determinada relação entre a assistência e a experiência, os socorros e o saber; foi preciso situar o doente em um espaço coletivo e homogêneo. (Foucault, 1977, p. X.)

Assim como para esse nascimento da clínica uma nova organização visual foi necessária, a narrativa cinematográfica também passou por profundas transformações que fazem parte do percurso até àquilo que chamo de “patologia fílmica”. O período do chamado pré-cinema dura até meados da primeira década do século XX e, segundo Arlindo Machado era composto por "várias modalidades de espetáculos derivadas das formas populares de cultura, como o circo, o carnaval, a magia e a prestidigitação, a pantomima, a feira de atrações e aberrações, etc.” (Machado, 2014). É a partir de um "aprender a contar uma história" diretamente conectada à dramaturgia clássica - seja ela do teatro ou da literatura - que nasce a narrativa hegemônica que segue onipresente no cinema contemporâneo.

Aí desenhamos a disputa entre aquelas relações médico-científicas - os corpos saudáveis versus os patologizados - com estas questões dramatúrgicas - narrativas hegemônicas (sãs) versus as inventivas (doentes).

Em Cemitério do Esplendor, sonhar é narrar. Weerasethakul parte de uma narrativa estranhamente realista para compor uma série de jogos de sonho e realidade, criando uma metáfora política disforme e onírica sobre a Tailândia contemporânea. No filme, a patologia protagonista é uma estranha doença do sono que ataca soldados em uma pequena aldeia da Tailândia abrigados em uma antiga escola transformado em um hospital improvisado.

A medicalização da cultura tem como mortos e feridos os pacientes e os próprios médicos. É neste sentido que Foucault, como vimos, aponta para os ritos religiosos populares como uma espécie de resistência difusa à medicalização autoritária de seus corpos e doenças. E nos alerta: "em lugar de ver nessas práticas religiosas um fenômeno residual de crenças arcaicas ainda não desaparecidas, não serão elas uma forma atual de luta política contra a medicalização autoritária, o controle médico? (Martins, 2004, p. 26.)

Tal rebeldia na análise e nos procedimentos de cura que Martins cita, são encontrados ao longo de toda narrativa de Cemitério do Esplendor (imagem 2.7). O cruzamento entre a história de Jen e o Soldado, também remete à uma visão espinosana de afeto e potência.  A partir da ideia de potência e de rebeldia ao cientificismo, parece nascer esta patogenia fantástica presente em Cemitério do Esplendor. É nessa contraposição entre saúde e doença que Weerasethakul vai costurando um postulado distinto sobre a cura e o adoecimento. Para Deleuze, uma das características caras à lógica da sensação é o convite irrecusável que uma obra é capaz de fazer ao espectador que "só experimenta a sensação entrando dentro do quadro, acedendo à unidade do que sente e do que é sentido” (Deleuze, 2011).

Enquanto o filme se aproxima do fim, ao contrário do que os manuais do design narrativo propõem, nada se fecha dramaturgicamente. Pelo contrário, se abre. Em uma das últimas cenas, Jen pede para que Itt "não durma ainda" quando eles se encontram de novo ao lado do leito de Itt. "Em breve eles nos tirarão daqui", diz a cuidadora. Itt responde que prefere dormir ali.

É a partir do elemento patológico central do filme - a doença do sono - que ele desenha uma narrativa fantástica que consegue racionalizar e objetivar a magia, ainda que mantenha em seu núcleo o teor subjetivo da poesia. A patologia é o elemento dramático que o liberta formalmente e acaba por permear todo jogo semântico da linguagem cinematográfica.

Em tempos regidos por uma necropolítica (Mbembe, 2018) e pela lógica fármacopornográfica (Preciado, 2018), a aparição de outros corpos-fílmicos, como o de Weerasetakul, surge como um sintoma de nossos tempos. Parece-me urgente atravessar tais afetos por vias mais porosas e mais distantes de uma fórmula dramática clássica. Ao promover um diálogo interdisciplinar sob o prisma da investigação em artes, o caminho que percorro nesta pesquisa inacabada busca enriquecer a atual discussão em torno do problema patológico-visual de maneira original para oferecer ferramentas analíticas para repensar o espaço da enfermidade como condição de potência e não de deficiência.

O que se desenha ao longo de toda a projeção de Cemitério do Esplendor é um tecer estranho, emaranhado de realidades e sonhos. Seu final não desvia e nem trai o percurso traçado até ali. Durante um plano longuíssimo onde pessoas de roupas coloridas dançam ao som de Love is a Song, do DJ Soulscape, uma espécie de poema preenche a banda sonora ao passo que a câmera executa um dos poucos movimentos do filme. Os desdobramentos deste gesto não são articulados na narrativa. A história acaba ali? Claramente não.

Bibliografia:

Disponível em http://www.kickthemachine.com/ page80/page24/page26/index.html. Acesso em 15 de Novembro de 2020.
Barros, L. C. (2021). Patologias fílmicas: subversão formal em narrativas doentes. Tese de Mestrado em Estética e EstudosArtísticos. Lisboa: FCSH Nova de Lisboa.
Deleuze, G. (2011). Francis Bacon: a lógica da sensação. Lisboa: Ed. Orfeu Negro.
Foucault, M. (1977). O Nascimento da Clínica. Rio de Janeiro: Forense Universitária.
Machado, A. (2014). Pré-cinemas e Pós-cinemas. Campinas: Papirus Editora.
Martins, A. (2004). "Biopolítica: o poder médico e a autonomia do paciente em uma nova concepção de saúde". Em Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 8 (14). https:// doi.org/10.1590/s1414-32832004000100003. Botucatu: UNESP. Pp. 21–32.
Mbembe, A. (2018) Necropolítica. São Paulo: N-1.
Sontag, S. (1984). A Doença como Metáfora. Rio de Janeiro: Edições Graal.
Preciado, P. B. (2018). Testo junkie: sexo, drogas e biopolítica na era farmacopornográfica. São Paulo: N-1 Edições.
Weerasethaukul, A. Cemitério do Esplendor (Rak ti Khon Kaen). Tailândia/Reino Unido/ Alemanha/França/Malásia/Coréia do Sul/México/EUA/Noruega, 2015.









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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».