Museu


por Gabriela de Freitas Figueiredo Rocha


Table of Gods, uma das instalações da exposição de Grada Kilomba Desobediências Poéticas
São Paulo, 2019
Homenagem às vidas vitimadas pelo colonialismo para acumulação de riquezas pela branquitude.


ver também: anti-racismo, arte contemporânea Afrobrasileira, memória

           
           O termo museu tem origem grega e significa “templo das musas”, expressão que em si carrega significados que historicamente foram associados a este nome, embora não o explique totalmente. Oficialmente, os museus são definidos hoje, pelo Conselho Internacional dos Museus (ICOM), um órgão associado à Organização das Nações Unidas, como:

“(...) uma instituição permanente, sem fins lucrativos, ao serviço da sociedade, que pesquisa, coleciona, conserva, interpreta e expõe o patrimônio material e imaterial (...). Os museus funcionam e comunicam ética, profissionalmente e, com a participação das comunidades, proporcionam experiências diversas para educação, fruição, reflexão e partilha de conhecimento”. (1)

Esta definição resulta de uma transformação gradativa da concepção universalizante de museu, uma construção ocidental que remonta o Iluminismo dos séculos XVII e XVIII, concomitante à constituição dos Estados nacionais europeus, assim como à expansão imperialista e colonial dos mesmos. O museu, um espaço público voltado à consagração da arte e cultura de um povo, dos objetos e símbolos que o identificam, era naquela época parte de um projeto de tomada de poder pela burguesia contra as aristocracias monárquicas, em nome de valores universais e humanísticos, que proporcionariam a todos os cidadãos igual acesso aos signos antes exclusivos ao segmento nobre da sociedade (VERGÈS, 2023).

Contudo, deste universal de humanidade estavam excluídos todos os que não se encaixavam na moldura de humano pleno - mulheres, negros, pessoas escravizadas e colonizadas naquele sistema. Assim, os museus se consolidaram historicamente como um repositório do imaginário da branquitude, de sua superioridade moral sobre os povos subjugados pelo processo colonial. Afinal, além de concentrarem os valores correspondentes à alta cultura, serviam também de “gabinetes de curiosidades” sobre o “novo mundo”, de suas culturas inferiores, signos e artefatos retirados de seus lugares para servirem ao deleite da sociedade europeia ilustrada. A natureza exótica dos trópicos, sua fauna e flora, eram também objeto cultuado pelos europeus, tanto que preencheria os acervos de museus de história natural e arqueológica, que ainda alimentam a curiosidade dos visitantes de todo o mundo das cidades do norte global.  

Não à toa, o museu que primeiro exprime todos esses significados, até hoje associado à exaltação da mais alta riqueza artística e estética, é o Louvre, em Paris, o primeiro museu aberto ao público, em 1793,  onde estão guardados objetos e obras que foram saqueados tanto das nações europeias sob o domínio napoleônico, quanto das colônias. Abaixo dos trópicos, os países do sul reproduziam essa mesma estética em seus territórios, fazendo dali espaços de exaltação do sucesso da branquitude em sucumbir os traços de inferioridade dos nativos racializados.

Assim, processos como a descolonização e democratização dos Estados, a crítica à apropriação vinda dos próprios países saqueados, que passaram a exigir a restituição de seus objetos como uma forma de reparação pelos danos históricos, fez com que o conceito do museu se deslocasse, para que esta versão “universal” pudesse abarcar outras perspectivas da história dos povos e nações, outras concepções de patrimônio e valores culturais. Contudo, como adverte Vergès (2023), a ressignificação dos museus se torna uma simples retórica, sem eficácia, enquanto o racismo continua latente, perpetuando exclusões, injustiças e hierarquias sociorraciais, tanto na sub-representação de artistas não brancos, quanto na escolha dos acervos e na distribuição de cargos de poder dentro das instituições, que continuam privilegiando pessoas brancas; além das disparidades entre os museus do norte e do sul, na distribuição de recursos e tecnologias. O museu, tradicionalmente, ainda é um espaço onde se reafirma a interdição dos corpos racializados aos espaços que não lhes pertence, tal como descreve Grada Kilomba, artista interdisciplinar, grande pensadora sobre os processos de descolonização dos corpos e das mentes:

“No racismo, corpos negros são construídos como corpos impróprios, como corpos que estão “fora do lugar” e, por essa razão, corpos que não podem pertencer. Corpos brancos, ao contrário, são construídos como corpos próprios, são corpos que estão “no lugar”, “em casa”, corpos que sempre pertencem. Eles pertencem a todos os lugares: na Europa, na África, no norte, no sul, leste, oeste, no centro, bem como na periferia” (KILOMBA, 2020, 48).  

Daí a urgência de descolonizar os museus - tanto aqueles de vocação “universal” quanto os que pretendem desestabilizar essa concepção - tarefa radical de transformação, que passa por contestar o capitalismo racial e a ordem heteropatriarcal que o sustenta, questionar a prevalência do imaginário de neutralidade que os cerca, interpelar o suposto vazio ideológico de suas representações, indagar a quem eles servem, quem os pode ocupar, quais sujeitos os produzem. Como defende Françoise Vergès, trata-se de um programa de desordem absoluta.   

(1)  Informação disponível em https://www.icom.org.br/?p=2756. Acesso em 18 de fevereiro de 2023.


bibliografia
Kilomba, Grada. Memórias da Plantação. Episódios de Racismo Cotidiano. Trad. Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2020.
Vergès, Françoise. Decolonizar o museu: programa de desordem absoluta. Trad. Mariana Echalar. São Paulo: Ubu Editora, 2023.   




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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».