Perspectiva—
por Gabriela de Freitas Figueiredo Rocha

Imagem da série solo Pussanga, de Uýra, de 2020, disponível em https://www.premiopipa.com/uyra/, consulta em 18/04/2024.
ver também: Anti-racismo, Museu, Patrimônio
Dentro da arte ocidental, aquela que conhecemos por ser designada a arte legítima, a perspectiva se tornou um elemento fundamental a partir do renascentismo europeu (séculos XIV a XVI), quando a arte passa a ser o veículo de representação de uma realidade cientifizada e racional, segundo um conceito universal de humano. A perspectiva é assim definida como uma técnica, aplicada às pinturas e desenhos, destinada a apurar as formas e representações bidimensionais, para que projetem com perfeição aquilo que a visão humana é capaz de captar; daí a importância atribuída ao ponto de fuga e profundidade, responsáveis por representar a tridimensionalidade do mundo sensível[1].
Ao longo dos séculos, a perpectiva acaba por ser alvo de críticas e desconstruída por movimentos posteriores ao renascimento, como o modernismo e expressionismo, mas, mesmo podendo ser considerada uma técnica ultrapassada, os seus efeitos vão reverberar sobre outros campos do conhecimento, ordenando o mundo a partir do que deve ser considerado correto, legítimo e digno de representação.
Assim, sendo parte de um processo que era também cultural, político, econômico e social, que criava as bases para os grandes sistemas de dominação vigentes, a perspectiva (ocidental) se tornou um valor, que perdura e influencia ainda hoje múltiplos aspectos da vida social, não apenas como técnica artística, mas como traço de um humanismo forjado numa ideia eurocêntrica e imperial de humanidade. Afinal, a noção de que há uma única perspectiva, aliada ao predomínio do progresso técnico científico, segundo o qual as sociedades evoluem em busca da perfeição, diz muito sobre os modelos de sociedade, de ciência e de cultura que estavam sendo forjados naqueles séculos. Isso significa também que a perspectiva passou a representar o horizonte pelo qual o Ocidente enxerga a si e ao outro (o oriental, o exótico, o selvagem, o infiel, o racializado, etc.), aquele que está distante ou simplesmente “fora da moldura”.
Portanto, em que medida vale à pena destrinchar o conceito de perspectiva e suas reapropriações, do passado e presente? Há diversos caminhos para se tentar responder à questão; quero trazer as possibilidades que vêm sendo exploradas pelas críticas feministas e anticoloniais, nos terrenos da cultura e das ciências.
A crítica feminista negra, por exemplo, vai elucidar tanto o vazio quanto a subrepresentação das mulheres racializadas na história das artes, da cultura e da ciência, que produziram um lugar de subalternidade, exotização e anonimato. Ao construir novas narrativas e olhares de subversão, utilizam a perspectiva própria como ferramenta de reapropriação de um corpo político e reinvenção de subjetividades, como se vê nos trabalhos artísiticos e teóricos de de bell hooks, Gloria Anzaldúa e Patricia Hill Collins, para citar apenas alguns exemplos de origem estadunidense; Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo e Lélia Gonzalez, de origem brasileira.
O perspectivismo ameríndio pode ser citado como um outro exemplo para se demonstrar que as diferenças radicais entre as sociedades ameríndias e a colonizadora não dizem respeito ao relativismo cultural, mas à maneira como entidades humanas e não humanas são ordenadas e se relacionam. A perspectiva aqui não é o privilégio humano de dar significado a todos os seres, ela é a própria forma de ser dessas sociedades, pois “ser” significa relacionar-se e transformar-se continuamente (CASTRO, 2002: 347-399). A resistência dos povos originários guarda muita relação com o perspectivismo, na medida em que toda a violência colonial não foi capaz de exterminá-los ou determinar o seu destino. O trabalho que vem sendo desempenhado por representantes indígenas como Davi Kopenawa, Ailton Krenak, Daniel Munduruku, no campo da literatura e do ativismo; Jader Esbell, Denilson Baniwa e Uýra, nas artes plásticas e performáticas, é uma tentativa de traduzir para nós sobre a falência da perspectiva e da narrativa única do ocidente. Demonstram assim que o humanismo ao qual nos apegamos para resolver os problemas que nós mesmos criamos está fadado ao fracasso, pois tornou-se insustentável crer que um mundo regido pelo progresso técnico-científico sobreviverá a ele mesmo, sem voltar-se para outras possibilidades de vida e de sociedade.
Denilson Baniwa, Cunhatain, antropofagia musical, de 2018, disponível em https://amlatina.contemporaryand.com/pt/editorial/a-cell-phone-or-a-laptop-dont-make-you-less-indigenous-denilson-baniwa/, consulta em 18/04/204A perspectiva é, então, um conceito que carrega significados políticos e, portanto, potências transformadoras, até mesmo revolucionárias. Nas artes ou em qualquer outro terreno, se for pensada pelo viés da multiplicidade, e não de um único campo de visão, universal e autocentrado, expande a criatividade e sobrepõe fronteiras que se imaginavam intransponíveis.
[1] Ver https://situarte.wordpress.com/2013/04/14/o-renascimento-e-a-perspectiva/ Consulta em 17/04/2024.
bibliografia
CASTRO, Eduardo Viveiros de. “Perspectivismo e Multinaturalismo na América Indígena”, In A Inconstância da Alma Selvagem. São Paulo: Cosac Naify, 2002, 347-399.
Algumas obras de autoras/es citadas/os:
ANZALDÚA, Gloria. Borderlands/La Frontera: The New Mestiza. San Francisco: Aunt Lute Books, 2007.
COLLINS, Patricia Hill. Pensamento feminista negro: conhecimento, consciência e política do empoderamento. Trad. Jamille Pinheiro Dias. São Paulo, Boitempo, 2019.
EVARISTO, Conceição. Insubmissas Lágrimas de Mulheres. Rio de Janeiro: Malê, 2016.
GONZALEZ, Lélia. Por um Feminismo Afro-Latino-Americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.
hooks, bell. Olhares Negros: Raça e Representação. Trad. Stephanie Borges. São Paulo: Elefante, 2019.
JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo. São Paulo: Ática, 2019.
KOPENAWA, Davi; ALBERT, Bruce. A queda do céu. Palavras de um xamã yanomami. Trad. Beatriz Perrone-Moisés. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.
MUNDURUKU, Daniel. Das coisas que aprendi: ensaios poéticos sobre o bem viver. São Paulo: Uká, 2019.
Obras de Jader Eisbell disponíveis em https://www.premiopipa.com/pag/jaider-esbell/. Consulta em 18/04/2024.
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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».
