Patrimônio


por Fabián Cevallos Vivar



Foto: Fabián Cevallos Vivar. “Caravelas”
Homenagem aos desportistas Portugueses que levam o nome de Portugal além fronteiras.
Rua Castilho, Lisboa, 2023.

ver também: Anti-monumentos, Arquivo, Memória

           
            Não é possível pensar na definição de Patrimônio sem recorrer a dois termos constitutivos que possibilitam o seu entendimento. Por um lado, a ideia de Pátria/pai, e, por outro, aquilo que recebemos como herança. Me preocupa aqui problematizar sobre aquilo que o Pai-Pátria-Nação quer herdar aos seus integrantes ou aquilo que é autorizado de ser mostrado e exibido como Patrimônio. Isto é, qual é o código de autoridade e de autorização dos usos do passado? É possível não concordar com aquilo que denominamos como Patrimônio?

Geralmente o Patrimônio é um discurso pré-fabricado e externo. A sua potencialidade é, precisamente, não mostrar quem é que o fabricou. Nesse sentido, não responde às agendas da história, entendida como uma construção objetiva, também não contesta às da memória a partir das experiências e subjetividades. A construção hegemónica daquilo que entendemos como Patrimônio contem um valor com um efeito placebo, não demanda nada da sociedade, é inquestionável, é Patrimônio. Mas o que é que esta ausente nas narrativas sobre uma sociedade que é coagida a proteger uma coisa sobre a que não existe um relato?

Frequentemente escutamos que o Patrimônio é de todos, o que é que isso quer dizer? Porque se é de todos não é de ninguém. O enunciado oculta os sujeitos de produção desse saber e os procedimentos que foram usados para selecionar, categorizar e ordenar. De fato, o objetivo politico desse enunciado é persuadir para que as pessoas se inscrevam no discurso que, “sendo próprio”, está controlado por uma instituição externa: o Estado-Nação. Não é a toa que em Estados-Nação como Portugal ou Brasil o conceito de Patrimônio esteja omnipresente nos âmbitos de ordem e controlo culturais.

As narrativas patrimoniais podem contribuir a perpetuar o colonialismo na medida em que geram uma ruptura com os relatos das comunidades e solidificam uma herança histórica contada pelo olhar eurocêntrico. Se for assim, temos direito a nomear algum Patrimônio como Patrimônio negativo? O que pensar daquelas formas de genocídio, ecocídio ou epistemicídio? E os monumentos e museus à colonização, arquivos da escravidão, ruinas de mercados negreiros, bibliotecas coloniais, entre outras? É importante questionar a relação temporal que é estabelecida pelo Patrimônio, porque há uma distancia entre passado, presente e futuro que nunca é explicita. Assim, é o monumento patrimonial tão válido no passado quanto para hoje?

Mas é possível contar histórias desde aquilo que está ausente, do que já perdemos, do que falta? Esta perspectiva motiva a pensar sobre a relação entre patrimônio, memoria e solenidade. Os corpos que sentem, os afetos e a postura corporal não podem colocar limites na problematização dos significados da história, o saber não pode estar bloqueado pelos rituais e tradições que impedem a capacidade de pensar a história como acidente e contradição.

Uma definição de cima para baixo não abre portas para questionamentos, pelo contrario, solidifica a noção e a fecha como uma máxima categórica que devemos seguir. É como que se a ideia de Patrimônio carregue uma pulsão de domesticação constante. Se o objetivo é reconstruir histórias, para transformar nossas visões colonizadas, preciso ter outros pontos de partida que possibilitem envolver, compreender e agir sobre a história (Smith, 1999). Nesse sentido questiono: como interrogamos a história oficial desde o uso da ideia de Patrimônio? ou, que histórias e usos do tempo e do passado possibilitam uma definição não canónica do termo Patrimônio?

Para trabalhar ainda com o conceito de Patrimônio preciso me ajudar de uma outra categoria de análise e coloca-la em tensão permanente, isto é, a noção de memória, ou seja, estou obrigado a carregar de politicidade as narrativas patrimoniais, para converte-las em formas ativas contra o disciplinamento da cultura.

De que forma a memória interroga a história? Penso a memória como irrupção, como deserção, e como um relato não obediente sobre a história, cujos agentes falam e produzem seus próprios relatos de memória atualizando a história (Sarlo, 2005). Quer dizer, são agentes das suas memórias, são pessoas que se inscrevem no discurso que formulam. Uma democratização das narrativas do passado deve acontecer pelo contraste entre história (evidencia, fonte e sequência) e memória (experiência interna, experiência sobre objetos-corpos). Provavelmente seja necessário, além disso, o uso da ideia de “memória multidirecional” (Rothberg, 2009) para entendermos as articulações entre memórias diversas, por exemplo das atrocidades cometidas pelos colonialismos, escravatura e holocausto.

As narrativas de museus, arquivos, bibliotecas e monumentos coloniais podem e devem ser problematizados, desobedecendo e ficcionalizando a própia narrativa vigente. A memória obriga a que as formas de arquivamento estejam em movimento porque chama à experiência subjetiva, seja direta, ou como na pós-memória, aquela que é recebida, criada e vivida pelas segundas gerações, possibilitando construir e atualizar as próprias memórias (Hirsh, 2008).

Bibliografia:
Hirsh, Marianne, (2008). “The Generation of Postmemory”. Poetics Today. 29 (1). 103.
Rothberg, Michael (2009). Multidirectional Memory. Remembering the Holocaust in the Age of Decolonization. Stanford: Stanford University Press.
Sarlo, Beatriz (2005). Tiempo Pasado. Cultura de la memoria y giro subjetivo. Una discusión. Buenos Aires: Siglo XXI.
Smith, Linda T (1999). Decolonizing Methodologies. Dunedin: University of Otago Press.



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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».