Desenho  


por Millena Lízia


Automar, 2019
caderno de desenho-escrita com cílios
15,0 x 5,0 cm


ver também: Experiências epidérmicas, Corpo-filmico, Educação antirracista

                                        Desenho-Desejo Desenho-Escrita Desenho-Fazença Desenho-Caminho
       
   
– Se você desenha, você faz!
Embora seja com graça que eu retomo esta fala de minha mãe, Sandra, repetida pra mim tantas vezes, por esses tempos a recupero com o entendimento de que guarda aí toda uma base de saber que me compõe. Geralmente, era a típica resposta que eu recebia quando me queixava de que não sabia fazer algo e ela tratava de me retornar (às vezes de forma impaciente, com minha pouca fé em mim mesma) me relembrando que o desenho oferecia as bases para a realização. Sem brincadeira. Acho que se eu chegasse pra minha mãe contando que não conseguia construir um foguete, era capaz dela me responder que, se eu desenho, tenho a capacidade da construção, pois assim ela mesma fazia, como um ser dotado de múltiplas habilidades manuais que passavam pelo desenho, ou, talvez, que partissem daí.
Bom, convenhamos, minha mãe não construiu um foguete. Se bem que me lembro que houve um robô com sistema auto falante – feito de caixas de papelão e compartimento para o rádio à pilha.
Tem algo nessa história que me diz que vale a pena a gente prosseguir. As colocações da Sandra quanto à relação entre o desenho e a realização me levam a crer que sua concepção não tratava de situar o desenho como um recurso intermediário, projetual, representativo ou intérprete para algum fazer, absolutamente. O que está em questão é entendê-lo como um saber que nos proporciona recursos para a realização, e para qualquer realização. Haveria, portanto, seguindo esta lógica, uma aproximação entre realização e desenho, este saber que é indissociável ao fazer, este pensamento que se faz em realização. Quando desejava realizar a costura de uma roupa, por exemplo, em meio às angústias de não saber costurar, o ensinamento de que se eu desenho eu costuro me foi dito no sentido de me fazer entender que as minhas habilidades em desenhar me davam os recursos de que precisava para esta realização. E eu costurei. E poderia descrever aqui realizações de outras naturezas.
Aliás, as filiações dessa conversa, as referências para este debate, encontram nutrição em outra relação entre mãe e filha. Em “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita” , Conceição Evaristo narra como o gesto de sua mãe de desenhar no chão o sol (como simpatia para chamar o corpo celeste nos dias de chuva e, assim, conseguir dar conta do serviço como lavadeira) tenha sido, talvez, o que ofereceu as bases para sua escrita, entre as urgências e esperanças. Rememorando este gesto, que descreve como sendo solene e o atribui, provavelmente, às heranças ancestrais, ela chama a atenção, ainda, para o fato dele não estar implicado com os regimes das representações. Desse modo, o sol, desenhado com graveto naquela terra lamacenta pela mãe da Conceição, era ele próprio o sol, pois seu desenho já fazia as movimentações que traziam sua presença, portanto. De uma presença que se fez na sua urgência, na sua esperança, no seu gesto, no seu desenho-escrita. O que me leva a crer que uma coisa nunca é apenas uma coisa, mas, sim, um encontro de ordem cósmica.
Ao invés de entender a minha trajetória como sendo habitante de um não-lugar (já que eu já tive que escutar que minha produção artística era muito acadêmica e que minha pesquisa acadêmica era muito artística), prefiro situá-la como uma composição, ou como sendo habitante de muitos territórios, pois sua natureza não se faz no específico, mas se constrói nas tramas, nas experiências, nas relações - e mesmo nos desajustes e nos desalinhos, e fazendo disso escritas-desenhos, em diferentes organizações. Neste quesito, uma orientação que me vem é a da Audre Lorde, que entendeu as imbricações de sua existência e nos proporcionou ricas reflexões como as presentes em seu ensaio "Poeta como Professora–Humana como Poeta–Professora como Humana" .
Dentre os fundamentos de minha trajetória, e é disso também para que estamos nos voltando, está o meu entendimento do que é pesquisa. Ao longo do meu percurso, pesquisa começou a se configurar como um conjunto de caminhos em busca das dignidades. Tenho pra mim que este registro-resisto perpassa a minha produção, independentemente do formato.
Enfim, nessa história toda, que compartilho um pouco – de ser artista como pesquisadora, pesquisadora como artista, de desenhar como escrevo e de escrever como desenho – seguindo as pedras que me foram cantadas (e encantadas), me volto à palavra, pois nela há também fundamentos dignos de valor para apontarmos caminhos. Ao me debruçar sobre o desenho como um conjunto de saberes, me veio, propriamente, sua palavra, e de como ela comunica tanto sua natureza de ser um substantivo, como também sua natureza verbal – conjugada no presente do indicativo e na 1a pessoa do singular. Estes traços de suas peculiaridades permitem, ainda, alguns apontamentos enriquecedores nesta proposição. Vejamos:
Por mais simples que seja, parece que o gesto (solene e caprichoso) do desenho sempre está a nos convocar, nas urgências do hoje, para como nos construímos e nos realizamos, para como se dá o desenho de um "eu".
Mas, como já tocado aqui, uma coisa nunca é só uma coisa.
Nessa relação simultânea entre o substantivo e o verbo, o desenho parece, ainda, registrar um jeito zombeteiro que alerta que enquanto achamos que quem desenhamos somos nós, reles mortais, ele nos diz, digníssimo de sua presença:
– Eu desenho.


Bibliografia
Alexandre, M. A. (org) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007, p. 16-21.
Byrd, Rudolph P.; Cole, Johnnetta Betsch, Guy-Sheftall, Beverly (org.). I Am Your Sister: Collected and Unpublished Writing of Audre Lorde. Oxford University Press, 2009.




perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ perMARÉ

Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».