Corpopolítico


por Inês Zinho Pinheiro


Corpopolítico
Colagem fotográfico, curadoria de Inês Zinho Pinheiro.
Moss Dean

ver também: Corpo-filmico, Corpo, Corpo-território

           
           Quando penso no que corpopolítico possa ser, penso num corpo em movimento. Movimentos que se desenvolvem de formas que apenas esse corpopolítico poderia imaginar. Lembro-me da sucessão de palavras de André Lepecki (2006) ao descrever o “movimento que acontece onde não deveria acontecer [...] num momento impróprio” (p. 108), num corpo que se deixa invadir, mesmo quando era suposto ignorar intensidades e ritmos inadequados, descabidos e fora do expectável. A qualidade imprópria deste corpo e deste movimento parece surgir da ineficiência perante as suas supostas funções e os objetivos que lhes deveriam ser queridos. Mas não, para conseguir pensar o corpopolítico noto, tanto na sua estranheza, quanto na sua resistência “à documentação, à certificação e à economia” (p. 109) por, na verdade, querer movimentar-se simplesmente em prol do movimento. Ou seja, um corpo dançante que ignora “o projeto colonial” (p. 120) que pode coincidir com “as fantasias europeias sobre a dança” que, por essa razão, quase que se torna automaticamente irrelevante por não ser produtivo, portanto, sem valor.

Para continuar a visualizar o corpopolítico evoco igualmente o ‘corpo utópico’ concebido por Michel Foucault (2013). Para além de ser impróprio, o corpopolítico – tal como o ‘corpo utópico’ – parece ser incompreensível, penetrável, mantendo-se opaco, aberto e simultaneamente fechado. Um dos aspetos que mais admiro neste corpopolítico é a sua qualidade de constante contradição consigo próprio que surpreende, podendo seduzir ou, por outro lado, repugnar. A mim, seduz-me. Seduz-me por me relembrar e fazer sentir corporalmente “o ponto zero do mundo, lá onde os caminhos e os espaços se cruzam” (Foucault, 2013: 14) de uma forma que afasta a linearidade e a tendência constante em explicar o mundo e os seus processos através de relações de causalidade que me entediam e que encurtam os meus horizontes de pensamento em movimento.

Deparo-me com o incessante carrilamento para a causa-efeito construído por essas ideias de produtividade e eficiência. De modo a provocar descarrilamentos propositados, agarro-me a pensamentos de outros corpospolíticos. Um deles é o de Clarice Lispector (2020) quando, por exemplo, descreve “uma nudez vazia” (p. 37). Esta é uma nudez que se destapa pela “ausência de tudo o que cobre”, em corpos que não delineiam o nu, mas que o revelam. A escritora também evoca o que acontece quando sensações, pensamentos e memórias são extremas. Quando são tão fortes que o corpo grita em si mesmo. Esta expressão, que não encontra alternativa ao grito, parece-me fazer parte do corpopolítico que me ocupa ao longo desta reflexão. Uma geração de energias de tal modo intermitentes, fugazes e, ao mesmo tempo, resistentes e maleáveis, que se canalizam para o grito corporal.

A preocupação de Hannah Arendt (2005) sobre a nossa incapacidade de nos movermos politicamente tem constituído parte das minhas inquietações relativas ao bloqueio que uma sociedade que legitima e promove a produtividade e a conformidade, enquanto menospreza e tenta impedir o tal movimento pelo movimento. Um tipo de dança que se preocupa apenas com a sua qualidade cinestésica surgida desse corpopolítico que não tem como objetivo o controlo, a obediência, a submissão... tudo destinos que me conduzem a ver ligações a uma espécie de dependência ao poder, impedindo-nos, realmente, que nos movimentemos politicamente.
Então porque não canalizar intencionalmente esse grito corporal? Talvez esta possa ser uma intencionalidade a alinhavar para a tomada de consciência do nosso próprio corpopolítico que, apesar das suas circunstâncias envolventes, explora modos de se mover politica, estranha e resistentemente.



bibliografia

Arendt, H. (2005). The Promiss of Politics. Schocken Books.
Foucault, M. (2013). O Corpo Utópico, as Heterotopias. n-l Edições.
Lepecki, A. (2006). Exhausting Dance: Performance and the politics of movement. Routledge.
Lispector, C. (2020). A Paixão Segundo G. H. Rocco.




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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».