Utopias periféricas


por Tiago M. Knob


Casa OPOCA, foto de Débora Fernandes. 

ver também: Espacialidade, Feminismos, Fronteira

           
            “A explosão não se dará hoje. É demasiado cedo… ou demasiado tarde” (Fanon, [1952] 2017: 5). Sempre é, me parece. E é nessa fronteira que a gente constrói cotidianamente o presente, a utopia.

É porque o futuro deve ser uma construção permanente do homem e da mulher que existem, tal como escrevera Fanon. “E esse futuro não é o do cosmos, mas o do meu século, do meu país, da minha existência” ([1952] 2017: 10). Da nossa cidade, dos nossos bairros, das nossas ruas, da nossa utopia, de outras utopias, da gente que vive hoje o cotidiano.

Entender o seu lugar no mundo, pensar por si só e perceber que outras pessoas pensam”, nunca foi uma virtude desses nossos tempos submersos pelo modo cultural de vida moderno. O centro do poder ocidental, o hegemônico que se globaliza, se tornou centro justamente porque negou, em seu processo violento, outras existências. Na prática, no ato, no passado e no presente, o pensamento moderno nunca foi capaz de compreender o significado dessa frase dita por Gustavo Collins, de 18 anos, um menino ainda jovem das periferias daqui.  

São Miguel Arcanjo, nossa cidade, é periferia da periferia do Estado de São Paulo. Mais um canto oculto de um dos países mais desiguais do planeta e que fundamenta sua economia em um modelo político e cultural que a gente chama Agrossistema. É todo um arranjo social, consciente e inconsciente, para a exploração pura e simples do trabalho e do trabalho infanto-juvenil semiescravo para a colheita de um dos maiores PIBs agropecuários do Estado de São Paulo:

Eu sou morador do bairro Jardim São Carlos que é uma das periferias aqui da cidade e presencio cotidianamente as mazelas que afetam a infância e a juventude são-miguelense, sendo uma das mais visíveis, mais notáveis, a exploração do trabalho infanto-juvenil. Como foi lembrado pelo Promotor, muitos jovens têm diversos sonhos lá, sonhos esses que são infelizmente ceifados (...). Há uma frase do professor Paulo Freire que é mais ou menos assim: não há vida sem morte como não há morte sem vida, mas há também uma morte em vida, e a morte em vida é exatamente a vida proibida de ser vivida. Muitos jovens no Jardim São Carlos eu vejo como mortos em vida, são proibidos de sonhar. Às vezes, muitos têm que deixar a escola, deixar de brincar, não têm acesso à cultura, ao esporte, ao lazer, porque desde cedo precisam ir trabalhar para complementar a renda familiar e, em alguns casos, serem a única renda da família.



Kaíque Lopes, de 17 anos, disse essas palavras na abertura do Encontro da Rede Municipal de Proteção dos Direitos da Criança e do Adolescente na Câmara de Vereadores de São Miguel Arcanjo com a presença de diversas autoridades locais. É parte de uma das ações do OPOCA* que tenta, também, um pouco, levar para o centro das discussões, do poder institucional, de onde se decide sobre orçamento público, a periferia, nossas demandas, nossas vozes, nossos talentos, quereres, necessidades, inteligências, vontades.

É porque outras pessoas pensam, cantam, dançam, vivem, trabalham, são exploradas, sobrevivem.

E é porque não virá de forma natural essa percepção.

Há de haver um esforço, um trabalho intenso, continuado e amplo, persistente e de organização em comunidade, de andar por nossas cidades, cantos, becos, centros, campos; de cavar espaços, procurar brechas, se infiltrar, coletivamente, na democracia moderna que em sua essência é violenta; gerar conhecimentos a partir desse caminhar; compartilhar os saberes e os desafios entre os que caminham.

É um esforço amplo, creio, dentre outros, com outros termos, de descolonização.  

Um processo histórico de autodeterminação, de afirmação de outros saberes, de valorização de outras experiências; da luta pelo direito a ser, a pensar a partir da própria história, da própria cultura, de se apropriar do que é nosso; de afirmação da dignidade humana.

É uma utopia crítica e cotidiana da vida.

Um caminhar que pretende vencer as utopias da morte.

E a gente contraria a etimologia da palavra. É a experiência imediata, presente e comunitária, imperfeita, contraditória por vezes, sempre melhorável; a emergência do que será o sistema alternativo ao que estamos sofrendo em um futuro que não se antecipa, mas que se vive cotidiana e pedagogicamente.

*OPOCA (Observatório Popular Cidade do Anjo): OPOCA é uma Intituição que se propõe como um espaço privilegiado para o diálogo e para as aprendizagens que objetivam, no cotidiano, qualificar a capacidade de criar em comunidade alternativas para a construção de justiça social. Para tanto, caminha através de encontros, estudos e diálogos – as Rodas de Encontros – para elaborar, produzir e influenciar políticas públicas e para o desenvolvimento de ações e projetos em seus espaços permanentes de pesquisa e atuação: Cultura, Educação, Sustentabilidade e Direitos Humanos, assumindo, como eixo transversal, o enfoque de gênero, classe e raça. Saiba mais em www.opoca.org.



bibliografia
Fanon, Frantz (2015 [1961]). Os condenados da Terra. Trad. António Massano. Lisboa : Letra Livre.
Knob, Tiago Miguel (2018), A Vida Delas e Deles, a Nossa, na Cidade do Anjo: uma utopia crítica pós-colinial das gentes do cotidiano. Tese de Doutoramento apresentada à Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra.






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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».