Anti-monumento


por Lucas Camargo de Barros


“Quieto”
Mulambö (2021)
114 cm x 161 cm
Técnica mista sobre madeira


ver também: Arquitetura, Patrimônio, Museu

           
            Quando escrevo este verbete, o site do Sistema de Informação para o Património Arquitectónico (SIPA), apresenta uma página falha, evasiva e cheia de defeitos sobre a escultura de D. Afonso Rodrigues em Guimarães, considerado um dos fundadores do Estado-nação português. A falha de sua presença virtual contrasta com a imponência da presença real e a simbólica de sua figura. Em “Remoções e derrubadas de monumentos como política dos incomuns” (Aguiar & Maciel, 2023), as autoras refletem sobre os gestos radicais e profundas contra momumentos intensificadas após as manifestações antirracistas de 2020, depois do assassinato de George Floyd. A luta contra símbolos nacionalistas como o de Edward Colston em Bristol, um dos maiores mercadores de pessoas escravizadas entre 1680 e 1692. Quando pensa-se na ideia de anti-monumento, tais gestos vêm à tona - e são de fato ações como essas que ajudam a refletir a necessidade de ressignificar a derrubada de tais momumentos. Mas nosso recorte para o presente verbete vem do trabalho feito em “O Corpo de Afonso” (2012), de João Pedro Rodrigues, onde essa derrubada é simbólica [1].

“Como seria o corpo do primeiro rei de Portugal, D. Afonso Henriques, figura tutelar, alvo de mitificações sucessivas no decurso da nossa História?”[2] indaga a sinopse oficial do curta-metragem. É a partir deste corpo português moldado ao longo de séculos na base do patriarcado, masculinidade, bravura e patriotismo, que “O Corpo de Afonso” é composto. Mas para além do corpo do rei fundador da nação, Rodrigues acaba por investigar o corpo do próprio País, a Pátria. Atravessado por dados fílmicos e extra-fílmicos, um simples casting torna-se uma representação de um espírito nacional, misturando mitos e elementos que moldam a sociedade portuguesa até os dias de hoje.

Visualmente, as decisões estéticas e políticas convergem de maneira clara a fim de dar uma outra concretude ao mito. O uso do chroma-key aqui, evidenciado desde o início da narrativa, torna-se o ponto-chave para compreender a construção imagética destes corpos. O fundo verde, aberto às possibilidades infinitas, é o espaço ideal para uma reimaginação do corpo do primeiro rei de Portugal. À medida que os candidatos a D. Afonso Henriques vão sendo apresentados e se despindo, os próprios corpos dos homens musculosos tornam-se também outra espécie de chroma-key, ou seja, podem se transformar naquilo que o realizador deseja. Rodrigues afirma que o filme “é uma espécie de corpo com muitas cabeças”[3], quase como Hidra de Lerna[4], dificílimo de se abater.

Reside nesta desconfiança por esses corpos bem acabados o tom irônico diante desses homens que pretensamente darão carne ao primeiro rei de Portugal. Há uma evidente mirada queer para esses homens musculosos que desmonta o monumento-ideia do rei. Para além de referenciar o trabalho de Warhol (Screen tests), há também uma proximidade das produções pornográficas amadoras que inundam a internet como técnicas de produção do prazer e dos nossos desejos sempre moldados pela heteronormatividade. Como bell hooks afirma: “so much of the quest for phallocentric manhood rest on a demand for compulsory hetereossexuality” (hooks, 1992). No entanto, mesmo que mostrando a força, do músculo, da coragem e do falo, a narrativa é subvertida e estes corpos se expandem para outro lugar, bem longe das veias saltadas e da potência masculina. O fetiche da imagem que exala dos homens acaba por se esvair à medida que vão apresentando suas próprias fragilidades sociais.

Ao passo que os homens se despem das vestes, vão também tirando a camada hipermasculinizada que os corpos poderiam impor. As histórias de desemprego, as anedotas das cicatrizes, o histórico das prisões, enfim, parece que toda narrativa deles têm a função de destroná-los. Esses homens não estão na posição de poder, muito pelo contrário. Estão em posições subalternas, alvos fáceis de uma organização económica que corrói corpos dissidentes como os deles. Mais do que os potentes homens dos pornôs “beefcakes”, a relação aqui parece remeter a outro tipo de produção pornográfica amateur: o gay-for-pay. Neste gênero de filme homoerótico, geralmente um realizador fora de campo oferece dinheiro ao entrevistado que é, alegadamente, heterossexual. No filme de Rodrigues, a relação de poder está escancarada. O monumento, não só de D. Afonso Henriques, mas daquilo que o heteropatriarcado construiu como Homem, está no chão.

É importante sempre lembrar que estes monumentos erguidos sob a lógica da necropolítica (Mbembe, 2011) ainda permeiam nosso imaginário, marcando os espaços urbanos e nossas subjetividades. Mais do que estátuas, esses símbolos evocam o poder de decidir quem é lembrado ou esquecido, quem vive ou morre. E, portanto, é imperativo que caiam.


[1] Para uma versão mais ampla deste assunto ver o artigo escrito por Barros e Vivar (2023) disponível em https://revistas.ut.edu.co/index.php/calarma/article/view/3125/2577
[2] In https://lx.blackmaria.pt/language/pt/project/o-corpo-de-afonso/.
[3] https://www.publico.pt/2012/12/20/jornal/quantos-corpos-sao-precisos-para-fazer-afonso-henriques-25782945
[4] Monstro da mitologia grega composto com sete cabeças morto por Hércules.

bibliografia
AGUIAR, Isadora de; MACIEL, Lucas. Remoções e derrubadas de monumentos como política dos incomuns. MANA 29(2): e2023019, 2023.
BARROS, Lucas; VIVAR, Fabián. Un monumento anticuerpo: más allá del tejido orgánico en "El cuerpo de Afonso". Revista Calarma, Universidad del Tolima, vol. 10, no. 19, 2023.
hooks, bell. "Representing Whiteness in the Black Imagination." In Black Looks: Race and Representation. Boston: South End Press, 1992.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2011.
RODRIGUES, João Pedro. O Corpo de Afonso. Curtametragem. Portugal, 2012.



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Este trabalho é financiado por fundos nacionais através da FCT – Fundação Para a Ciência e a tecnologia I.P., no âmbito do projeto «CEECIND.2021.02636».